Cofina

A rivalidade estratégica Eua-china

NUNO SARDINHA MONTEIRO Oficial de Marinha. Professor de Estratégia na Escola Naval. Coluna quinzenal à terça-feira

Arecente parceria de segurança AUKUS foi mais um passo no pivot norte-americano para o Indo-pacífico, que tem como pano de fundo a rivalidade estratégica Eua-china. Tal rivalidade apresenta uma complexidade bem superior à que caracterizou a Guerra Fria, levando muitos autores a evitar essa expressão para a qualificar. De facto, a dimensão populacional da China, a sua integração na economia mundial e o desenvolvimento tecnológico (em áreas de ponta, como inteligência artificial e computação quântica) apresentam desafios completamente diferentes dos colocados pela União Soviética.

Por tudo isso, o analista Fareed Zakaria designou o relacionamento Eua-china como “Paz Fria”, procurando captar, por um lado, a interdependência económica entre Washington e Pequim (nunca verificada com Moscovo) e, por outro lado, as tensões crescentes entre as duas potências. Já o académico Rush Doshi designou esta rivalidade como o “Longo Jogo”, deixando implícito o prolongamento no tempo desta disputa, bem ao jeito da proverbial paciência estratégica dos líderes chineses e da sua propensão para o desenvolvimento de estratégias de longo prazo.

Certo é que estamos perante uma combinação de cooperação, competição e confronto, com múltiplas nuances. Efetivamente, o bem comum exige a cooperação em aspetos como ambiente, riscos biológicos (epidemias e pandemias) e não proliferação nuclear. Todavia, há áreas em que a competição é inevitável, designadamente comerciais (incluindo direitos de autor) e tecnológicas (com destaque para o 5G). E o confronto tem sido evidente em matéria de direitos humanos e em duas áreas em que a coação militar já é percetível: mar do Sul da China e ciberespaço.

Na primeira, a soberania de diversas ilhas tem sido disputada pela China e por outros países, com Washington a contestar Pequim, conduzindo patrulhas marítimas junto desses territórios, para afirmar a liberdade de navegação em águas que considera internacionais. A questão de Taiwan tem também motivado o crescimento das tensões entre as duas potências.

Quanto ao ciberespaço, o confronto ganhou mais visibilidade em julho deste ano, quando a Casa Branca acusou o governo chinês de estar por detrás de um ciberataque à Microsoft. Na resposta, a China culpou os EUA pela maioria dos ciberataques mundiais.

Entretanto, o Center for Strategic and International Studies, de Washington, apontou que o domínio cibernético tem sido o palco privilegiado da espionagem chinesa contra os EUA, ao compilar 160 casos, nos últimos 20 anos, quase todos perpetrados no ciberespaço.

Importa referir que este misto de cooperação, competição e confronto decorre num ambiente de elevada integração da China na economia mundial, que se tem vindo a acentuar desde a sua adesão à Organização Mundial do Comércio, em 2001, de tal forma que, no ano passado, o comércio externo chinês atingiu um novo máximo, fixando-se em 12,8% do comércio global. Acresce que a China é já o maior parceiro económico de 64 países, enquanto os EUA lideram as transações comerciais com “apenas” 38 países, invertendo o que se passava há duas décadas.

Aliás, durante a pandemia, a consciencialização para a dependência global relativamente à economia chinesa está a levar muitos países ocidentais a procurarem aumentar a sua autonomia estratégica, ensaiando um desacoplamento relativamente à China. No entanto, o colossal mercado chinês, a sua mão de obra imensa e o dinamismo da sua economia (responsável por 18% do PIB mundial e a caminho de se tornar a maior do mundo, entre 2030 e 2040) exercem um poder de atração extraordinário, pelo que as empresas ocidentais têm resistido a concretizar esse desacoplamento, que implicaria prescindir de um mercado gigantesco e abandonar as cadeias logísticas construídas ao longo dos últimos anos.

Em suma, enfrentamos um período prolongado de rivalidade sistémica Eua-china, em que a interdependência económica funcionará como elemento dissuasor e travão a uma eventual escalada do statu quo. Contudo, é imperativo diminuir as tensões no mar do Sul da China e no ciberespaço, para que a atual “Paz Fria” não evolua para uma situação de conflito, precipitando, de forma indesejada, o desfecho do “Longo Jogo”.

A China é já o maior parceiro económico de 64 países, enquanto os EUA lideram as transações comerciais com “apenas” 38 países.

A rivalidade estratégica Eua-china apresenta uma complexidade bem superior à que caracterizou a Guerra Fria, consistindo num misto de cooperação (em aspetos como ambiente, epidemias, pandemias e não proliferação nuclear), competição (em aspetos comerciais e tecnológicos) e confronto (em matéria de direitos humanos e em duas áreas em que a coação militar já é percetível: mar do Sul da China e ciberespaço).

Enfrentamos um período prolongado de rivalidade sistémica entre EUA e China, em que a interdependência económica funcionará como elemento dissuasor e travão a uma eventual escalada do statu quo, sendo imperativo diminuir as tensões em dois importantes palcos de confronto: mar do Sul da China e ciberespaço, para que a atual “Paz Fria” não evolua para uma situação de conflito, precipitando, de forma indesejada, o desfecho deste “Longo Jogo”.

OPINIÃO

pt-pt

2021-10-26T07:00:00.0000000Z

2021-10-26T07:00:00.0000000Z

http://quiosque.medialivre.pt/article/281938841123268

Cofina