Cofina

Newcastle Utd.: quando o livre vai à barreira

JOSÉ SÁ REIS Professor na Fac. de Direito da Universidade do Porto, Advogado jose.sa.reis@gmail.com Coluna quinzenal à terça-feira

Ahistória, no que tem de mais essencial para os adeptos de futebol, tem-se repetido regularmente: de repente determinado clube é adquirido por um milionário ou por um fundo de investimento com uma injeção de muitos milhões de euros. Normalmente trata-se de clubes de segunda linha no panorama das respetivas ligas nacionais e sobretudo no europeu, que da noite para o dia se transformam em putativos candidatos a vencer a Champions. Foi assim com o Chelsea, com o City, com o Leicester, com o PSG, com o Leipzig ou com a Roma – não falando já de monstros sagrados como o United, Liverpool, Inter ou AC Milan. Os investimentos costumam ser bem-sucedidos (não obstante alguns casos de insucesso, como provam as infrutíferas tentativas de construir um colosso de futebol na Rússia), e os alvos, cada qual à sua escala, conseguem a glória desportiva que nunca tiveram ou que há muito tinham perdido. Quem poderia imaginar, há 10 anos, que dois clubes de cujo CV apenas constavam dois títulos nacionais e uma vitória na defunta Taça das Taças seriam hoje dois dos principais candidatos a vencer a Champions? Mas era esse o palmarés do PSG e do City em 2011.

Nas últimas semanas o mundo de futebol voltou a agitar-se com mais um mega-takeover. Desta vez a lotaria saiu ao Newcastle Utd., um histórico e simpático clube do Norte de Inglaterra que normalmente faz o seu campeonato entre a luta por um lugar na UEFA e pela manutenção, com algumas passagens pela segunda divisão. O último dos quatro títulos nacionais foi ganho há quase um século, e o único troféu europeu (uma Taça das Cidades com Feira) há mais de meio. Mas de repente tudo pode mudar, e a aquisição do clube por um fundo de investimento saudita, por um valor que ultrapassa os €350M, transforma os até agora modestos Magpies nos últimos novos-ricos da Europa.

É aqui que a história começa a ficar interessante: desta vez os poderes instituídos na Premier League revoltaram-se e tentaram boicotar a aquisição, ou pelo menos os seus efeitos práticos. Os contornos não são simples, mas os entraves começaram pela alegação (que parece não ser completamente falsa) de que o

Quase tenho vontade de comprar uma camisola do Newcastle. Ou de desejar um Brexit para o futebol.

Aqui temos o mais velho comportamento anticoncorrencial do mundo: incumbentes que fecham o mercado a novos players.

fundo investidor é controlado pelo Estado saudita. Para além de argumentos relacionados com as violações dos direitos humanos (assunto que, diga-se, nunca pareceu preocupar demasiadamente os ingleses), havia um conflito entre a Premier League e a Arábia Saudita decorrente do boicote das transmissões da bein, empresa catarense que detém os direitos de retransmissão dos jogos ingleses para o Médio Oriente – conflito cuja miraculosa resolução abriu as portas à autorização do negócio pela Liga (ou, quem sabe, vice-versa).

No entanto, após o anúncio da aprovação houve um “putsch”: 19 dos 20 clubes da Premier League (todos menos o Newcastle) reuniram-se de emergência, indignados com a surpresa desta aprovação e com os danos reputacionais que uma associação ao regime saudita poderá trazer à liga mais rica do mundo. E aprovaram (com a abstenção do City, o único que soube aqui manter a coerência) uma alteração às regras em vigor, proibindo temporariamente negócios entre clubes e entidades ligadas aos seus donos e assim esperando estancar parte considerável do influxo financeiro esperado pelo Newcastle.

Se uma das razões que fazem com que o futebol seja tão popular é o facto de espelhar o melhor e o pior do comportamento humano, aqui temos o mais velho comportamento anticoncorrencial do mundo: incumbentes que fecham o mercado a novos players. Estou longe (mesmo muito longe) de simpatizar com o regime saudita ou com os novos-ricos do futebol. Mas quando vejo “donos disto tudo” a usarem truques tão sonsos como estes para impedir que outros comam do mesmo bolo, quase tenho vontade de comprar uma camisola do Newcastle. Ou de desejar um Brexit para o futebol.

OPINIÃO

pt-pt

2021-10-26T07:00:00.0000000Z

2021-10-26T07:00:00.0000000Z

http://quiosque.medialivre.pt/article/281900186417604

Cofina