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Os perigos da dissociação

Tradução: Carla Pedro

As medidas repressivas do governo chinês sobre a Alibaba no ano passado, e sobre a plataforma de transporte privado Didi este mês, geraram uma forte especulação sobre o futuro do setor tecnológico no país. Há quem veja as recentes intervenções regulatórias chinesas como parte de uma tendência justificável que tem paralelo com o próprio aumento do escrutínio das “big tech” pelas autoridades dos EUA. Outros veem nisto uma forma de controlo de dados que, de outro modo, poderiam ser explorados pelos países ocidentais. E há ainda quem, de forma mais plausível, veja nisto uma chamada de atenção para lembrar às grandes empresas chinesas que o Partido Comunista da China ainda está no comando.

Mas, sobretudo em matéria consequencial, as ações do governo chinês são parte de um esforço mais vasto de dissociar a China dos Estados Unidos – um desenvolvimento que poderá ter sérias implicações a nível global. Apesar da constante deterioração nas relações económicas e estratégicas entre Pequim e Washington, poucos pensaram que esta rivalidade se transformaria num confronto geopolítico ao estilo da Guerra Fria. Durante algum tempo, os EUA foram bastante dependentes da China e as duas economias estavam demasiado interligadas. Agora, talvez possamos estar a dirigir-nos para um equilíbrio fundamentalmente diferente.

Houve três dinâmicas interligadas que definiram a Guerra Fria. A primeira, e talvez a mais importante, foi a rivalidade ideológica. O Ocidente liderado pelos EUA e a União Soviética tinham visões diferentes sobre como o mundo deveria estar organizado e cada um dos lados tentava propagar a sua visão, por vezes através de meios nefastos. Havia também a dimensão militar, ilustrada mais vivamente pela corrida ao armamento nuclear. E ambos os blocos ansiavam assegurar a liderança no progresso científico, tecnológico e económico, porque reconheciam que era um aspeto essencial para se ser predominante em termos ideológicos e militares.

Embora os soviéticos tenham acabado por se revelar menos bem-sucedidos do que os Estados Unidos no impulso do crescimento económico, o facto é que cedo alcançaram vitórias tecnológicas e militares. O bem-sucedido lançamento do satélite Sputnik funcionou como um alerta para os EUA.

As acentuadas rivalidades da Guerra Fria ocorreram em grande medida pelo facto de os EUA e a União Soviética estarem desacoplados. Os investimentos e progressos tecnológicos dos Estados Unidos não chegavam automaticamente aos soviéticos (exceto, por vezes, através de espionagem) da mesma forma que chegaram à China nas últimas décadas.

Mas, agora, as hostilidades sino-americanas, exacerbadas pela diplomacia incoerente do ex-presidente Donald Trump, criaram análogos modernos das rivalidades da Guerra Fria. A clivagem ideológica, que nem sequer estava no horizonte há 20 anos, está hoje bem definida, com o Ocidente a louvar as virtudes da democracia (defeitos incluídos), ao passo que a China promove de forma confiante o seu modelo autoritário um pouco por todo o mundo, especialmente na Ásia e África.

Ao mesmo tempo, a China abriu novas frentes militares, nomeadamente no mar da China Meridional e no estreito de Taiwan. E, é claro, a rivalidade económica e tecnológica tem vindo a escalar ao longo da última década, com ambos os lados a concluírem que estão numa corrida existencial para alcançarem a dominância em matéria de inteligência artificial. Embora este foco na inteligência artificial possa ser inadequado, não restam grandes dúvidas de que o controlo das tecnologias digitais, biociência, eletrónica avançada e semicondutores é de extrema importância.

Alguns observadores aplaudiram esta nova rivalidade, acreditando que ela dará ao Ocidente um propósito comum bem definido. Afinal de contas, o “momento Sputnik” motivou o governo norte-americano a investir em infraestruturas, educação e novas tecnologias. Uma missão similar para as políticas públicas atuais poderá trazer muitos benefícios; com efeito, a Administração Biden já começou a enquadrar as prioridades de investimento dos EUA no contexto da rivalidade sino-americana.

É verdade que muitas das histórias de sucesso do Ocidente durante a Guerra Fria assentaram no facto de a União Soviética funcionar como contraponto. O modelo de social-democracia da Europa Ocidental era visto como uma alternativa aceitável ao socialismo autoritário de estilo soviético. Do mesmo modo, o crescimento orientado para o mercado na Coreia do Sul e em Taiwan deve muito à ameaça do comunismo, que obrigou os governos autocráticos a fugirem à repressão explícita, a levarem a cabo reformas agrárias e a investirem na educação.

Ainda assim, os potenciais benefícios de um novo momento Sputnik são provavelmente mais do que contrabalançados pelos custos da dissociação. No atual mundo interdependente, a cooperação global é fundamental. A rivalidade com a China, se bem que essencial para a defesa da democracia em todo o mundo, não é a única prioridade do Ocidente. As alterações climáticas também constituem uma ameaça civilizacional e irão exigir uma estreita colaboração entre a China e os Estados Unidos.

Além disso, os comentadores de hoje em dia tendem a relativizar os tremendos custos da Guerra Fria. Se o Ocidente não tem agora credibilidade quando defende os direitos humanos e a democracia – incluindo em Hong Kong e na China – isso não se deve apenas a uma geração de intervenções militares desastrosas no Médio Oriente. Durante os anos em que os EUA acharam que estavam trancados num conflito existencial com os soviéticos, os norte-americanos derrubaram governos democraticamente eleitos no Irão (1953) e na Guatemala (1954) e apoiaram ditadores hediondos, como Joseph Mobutu na República Democrática do Congo e Augusto Pinochet no Chile.

É também um erro crasso considerar que a Guerra Fria promoveu a estabilidade internacional. Pelo contrário: a corrida ao armamento nuclear e as provocações de ambos os lados prepararam o terreno para a guerra. A crise dos mísseis de Cuba não foi a única vez em que os norte-americanos e os soviéticos se aproximaram do conflito aberto (e “destruição mutuamente garantida”). Também estiveram perto disso em 1973, durante a guerra do Yom Kippur; em 1983, quando os sistemas de alerta precoce soviéticos emitiram um falso alarme de lançamento, pelos EUA, de um míssil balístico intercontinental; e em várias outras ocasiões.

Nos dias que correm, o desafio é alcançar um modelo de coexistência pacífica que permita que haja concorrência por entre visões incompatíveis sobre o mundo e cooperação em matéria geopolítica e nos assuntos relacionados com o clima. Não significa isso que o Ocidente deva aceitar os abusos dos direitos humanos por parte da China ou que deva abandonar os seus aliados na Ásia; mas também não deve permitir-se a si mesmo cair numa ratoeira ao estilo da Guerra Fria. Uma política externa com princípios deve continuar a ser possível, especialmente se os governos ocidentais permitirem que as suas sociedades civis liderem o escrutínio dos abusos da China dentro de portas e fora do seu território nacional.

OPINIÃO

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2021-07-30T07:00:00.0000000Z

2021-07-30T07:00:00.0000000Z

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