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#42

No final de 2020, José Neves conseguiu um investimento multimilionário por parte de duas gigantes, a Alibaba e a Richemont. O empresário não se ficou por aqui: aderiu à Giving Pledge, lançou uma fundação e conquistou clientes na China.

CÁTIA ROCHA catiarocha@negocios.pt DIANA RAMOS dianaramos@negocios.pt

Ganhou dois investidores de peso, entrou no mercado chinês e ainda criou uma fundação com o seu nome.

José Neves, o cérebro por trás da Farfetch, conseguiu terminar um 2020 pandémico com um estratégico investimento debaixo do braço. A sua plataforma de moda de luxo arrecadou um investimento de 1.150 milhões de dólares (cerca de 971 milhões de euros), mas foi o nome dos investidores que centrou atenções. Numa só jogada conseguiu dar a mão à gigante Alibaba e ao grupo suíço de relógios e joalharia Richemont – dono da Cartier e daquela que é apontada como uma das rivais da empresa luso-britânica, a Yoox Net-a-porter. Anunciado a 5 de novembro de 2020, o investimento foi descrito como uma forma de a Farfetch se expandir na China, num país onde o apetite por produtos de luxo cresce a olhos vistos.

A China é já o terceiro maior mercado mundial de produtos de luxo, com um total de 52 mil milhões de dólares em vendas no ano passado, aponta a consultora Bain. Até 2025, estima-se que o mercado chinês represente metade das compras de luxo, eclipsando a América e a Europa.

Através da aliança com a Alibaba e com a Richemont, a Farfetch consegue aceder a um mercado de milhões de utilizadores, já com lições tiradas de uma pandemia que fechou o mundo em casa. Antes, quando um consumidor chinês queria comprar uma “clutch” Bottega Veneta, a aquisição podia ser incluída numa viagem a alguma metrópole – Paris, Roma, Londres ou Nova Iorque. Em 2020, com as restrições às viagens, muitos destes consumidores viraram-se para os canais online para satisfazer os desejos por produtos de luxo. Em entrevista ao Público, em fevereiro, José Neves dizia que “quem gosta de moda não deixou de gostar por causa da pandemia. Acaba até por consumir mais”.

A operação foi descrita pelo britânico Financial Times (FT) como um “marco” na competitiva indústria da moda de luxo. Não só conseguiu aliar-se a duas empresas de relevo na indústria, mas também aproximou duas rivais. O mercado viu com bons

Depois de transformar a forma como se compra luxo online, José Neves centra atenções em como será o mercado daqui a alguns anos.

olhos a ligação. No dia do anúncio, as ações da Farfetch, cotada na bolsa de Nova Iorque desde dia 21 de setembro de 2018, chegaram a subir 8%.

China, “round 2”

Desde março que a Farfetch tem uma loja digital no Tmall Luxury Pavilion da Alibaba, com acesso a 779 milhões de clientes. Foi o materializar da parceria com a Alibaba. Se o Tmall deu acesso à Farfetch a uma nova base de clientes, a plataforma de moda luso-britânica deu aos clientes chineses um novo sortido de marcas. A Farfetch disponibilizou produtos de 3.500 marcas de luxo globais no Tmall – 90% delas uma estreia.

Antes de chegar ao Tmall, a Farfetch já tinha tentado entrar na China, através de uma loja na Jd.com – uma das suas investidoras. A 31 de dezembro de 2020, a loja foi encerrada. “Volvidos três anos, cometemos um erro”, admitiu José Neves ao Público, na véspera da abertura da loja no Tmall. A diferença entre o potencial de clientes na Jd.com e no Tmall salta à vista: 250 milhões contra 779 milhões. Mas o mercado de clientes não é a única explicação. Há alguns anos, a Alibaba esteve no centro de um processo judicial, aberto pela dona da Gucci e da Balenciaga. “Quando começámos a falar com a Jd.com, não sabíamos quem iria vencer no luxo, se a JD ou a Alibaba que, na altura, estava sob mira das autoridades por causa da contrafação”, recordou Neves, ao Público. “Enquanto a Alibaba não limpasse a casa, em termos de propriedade intelectual, não seria uma plataforma para nós.”

Volvidos três anos, tudo mudou e a Farfetch quer estar onde estão os clientes. O ajuste esteve ainda ligado à própria perceção que o cliente faz das diferentes plataformas. “Os clientes chineses quando pensam em moda pensam em Tmall, e estou convencido de que é o parceiro certo”, resumiu o empresário ao Público, enquanto admitia a dificuldade de “mudar de parceiros, sobretudo quando se trata de empresas rivais”. O jogo de cintura do fundador da Farfetch prevaleceu.

Deixar marca com a FJN

Enquanto era preparada a oferta pública inicial da Farfetch, em 2018, já havia outra ideia a borbulhar na cabeça de José Neves: uma fundação. Dois anos depois, já em setembro de 2020, nascia a Fundação José Neves (FJN), descrita como uma entidade “para ajudar a transformar Portugal numa sociedade de conhecimento”. O português comprometeu-se a doar dois terços da sua fortuna à fundação, ao longo da vida, após ter aderido à Giving Pledge, iniciativa lançada pelos Gates e por Warren Buffett.

A fundação arrancou com um montante de cinco milhões de euros para potenciar o acesso à educação. Nos primeiros dois anos, o objetivo passa por abranger 1.500 estudantes. Segundo os números mais recentes, a fundação já assegurou o pagamento de propinas a 112 portugueses, num montante de 800 mil euros.

Outro dos cavalos de batalha da fundação é a saúde mental. O empresário portuense defende que esta é a segunda pandemia que o mundo atravessa. A pensar nisso, foi lançada este ano a 29KFJN, uma aplicação para smartphone, que dá acesso a um programa de desenvolvimento pessoal. Numa sociedade onde o estigma da saúde mental ainda existe, José Neves é um acérrimo defensor da psicoterapia, que faz há mais de dez anos, e da meditação, que pratica desde os 13 anos. “Temos de tratar da nossa mente como temos de tratar do nosso corpo. Isso devia ser tão simples. E devia ser numa perspetiva de manutenção”, afirmou ao Observador.

Do ZX Spectrum a Wall Street

Nascida em 2007 e lançada um ano depois, a aventura da Farfetch é a soma das experiências do empresário no mundo do empreendedorismo, por onde enveredou ainda adolescente. Quando tinha 19 anos e estudava na faculdade do Porto, José Neves lançava a sua primeira empresa, a Grey Matter – onde começou a trabalhar com Cipriano Sousa, que mais tarde se tornaria no homem-forte da vertente tecnológica da Farfetch. Na sua génese, a Grey Matter, uma “loja de software”, conforme descreveu em entrevistas, só tinha uma ligação ao mundo da moda, mais especificamente ao calçado: algumas empresas do setor eram suas clientes. Mas, desengane-se quem pense que a formação de José Neves está ligada à tecnologia. O empresário estudou economia, uma vez que já sabia programar. O gostinho por essa atividade começou ainda em criança, quando os pais lhe ofereceram um ZX Spectrum. Filho único, centrou-se naquilo que a tecnologia permitia explorar na altura, quando os jogos não estavam à distância de um download.

Depois da Grey Matter, lançou a Swear, a sua própria marca de calçado, em Londres.

E a ideia da Farfetch? Surgiu em plena Semana da Moda de Paris, em 2007. O “faz-tudo da moda”, como se apelidou, percebeu que quem crescia já apostava no comércio eletrónico, mas que algumas empresas não faziam ideia de como lidar com o online. E algumas das plataformas de comércio online, como o ebay ou a Amazon, não eram compatíveis com as “subtilezas do mercado de luxo”. José Neves voltou para Portugal, reuniu-se com os engenheiros e começou a traçar a Farfetch. O resto da história já é conhecido: a Farfetch expandiu-se, adquiriu empresas e ganhou aliados. De olhos no futuro, a atenção de José Neves centra-se noutra questão – adivinhar como se vai comprar bens de luxo daqui a cinco ou dez anos.

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2021-07-30T07:00:00.0000000Z

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