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Há uma luz que nunca se apagará

CHALANA FOI O MEU GRANDE ÍDOLO FUTEBOLÍSTICO E, JUNTAMENTE COM O BRASIL DE 1982, O MAIOR RESPONSÁVEL PELA MINHA PAIXÃO IMENSA PELO JOGO MAIS BONITO. É, A PARTIR DESSA VISÃO ENAMORADA, QUE O REPUTO O SEGUNDO MELHOR FUTEBOLISTA DA HISTÓRIA CENTENÁRIA DO BEN

1 Fernando Chalana jogava

futebol para divertir e para fazer sorrir o povo, oferecendo-lhe, a cada domingo à tarde, o ânimo para mais uma semana de duríssima labuta. Era assim, a transportar o futebol de rua, aquele em que a sua gama interminável de fintas hipnotizava os amigos nos baldios do Lavradio, onde se sagrara campeão de corta-mato, para o esplendor dos pelados e dos relvados deste País, obsequiando uma flamância resplandecente que a Luz não contemplava desde a despedida de Eusébio, que o craque franzino, de cabelos longos, bigode farfalhudo e argola à pirata na orelha esquerda, se recreava e se saciava com uma modéstia desconcertante. Já o povo, aquele a que o filho de um pedreiro e de uma empregada de limpeza da CUF nunca deixou de pertencer e que jamais quis defraudar, deslocava-se ao estádio para ver Chalana dar espetáculo, e entretinha-se incomensuravelmente, olvidando, durante uma hora e meia, as cicatrizes de biografias íngremes. Foi sobre essa matriz lúdica e prazenteira que o ambidestro, que era destro preferencial, se tornou, para muitos, no canhoto mais deslumbrante da história do futebol português. Lá está, bem vincada, a arte do engano e o desafio permanente das leis da física, que ´Chálas’, o poeta subversivo que clamava a liberdade que abril nos devolveu em doses esdrúxulas a cada toque na redondinha, dominava singularmente, obrigando-nos a aprender a conjugar o verbo ziguezaguear a cada drible dançante. Enquanto isso, regamboleava e superava mais um adversário, e depois outro e mais outro, sempre com um sorriso moleque e a ausência de malícia de alguém que nunca foi capaz de se deslaçar da candura da infância. Tan- to no futebol, como na vida. O que lhe custou imensos dissabo- res. Da perna partida na Póvoa de Varzim, numa tarde solarenga de São Martinho em 1979, após uma entrada pungente de um rival, às constantes lesões que o apoquentaram em Bordéus, conduzindo a uma tormentosa paragem de dois anos. Das dubiezes psicológicas inerentes à necessidade de se reinventar futebolisticamente no re- gresso ansiado, no verão de 1987, ao Benfica, sem a velocidade na deslocação e a explosão no assal- to aos espaços vazios que sempre o caracterizaram, mas mantendo a capacidade técnica superlativa, a qualidade assombro- sa no passe e na arte de proporcionar assistências, e a celeridade única na execução e no pensa- mento do jogo que o diferenciavam como predestinado, ao rela- cionamento com o ciclone mediático Anabela, a mais sumarenta e perfurante companheira de um futebolista da cronologia do ludopédio indígena, omnipresente em cada jogo, treino, nego- ciação de contrato ou aparição pública. Até ao convívio com a dolorosa depressão pós-carreira, em que o tormentoso apagar das luzes o levou a isolar-se do mundo e a desabar numa espiral negativa, acreditando mais na quietude trapezista dos pombos do que na benignidade dos seres humanos. Quando a vida parecia querer ziguezaguear Chalana, os amigos verdadeiros uniram-se e devolveram a bola ao Fernando. Que voltou a sorrir e a dançar, como um miúdo que nunca o deixou de ser, de águia ao peito, instruindo a sua arte a várias gerações de meninos. Das primeiras, que ainda o contemplavam como um ídolo, às últimas, que nunca o viram jogar, mas apreciaram através de vídeos as diatribes infindáveis do Pequeno Genial, como brilhantemente o cognominou José Ne- ves de Sousa.

O período mais excelso da carreira de Fernando Chalana ocorreu, aos 25 anos, no Euro’1984.

Numa altura em que a Federação Portuguesa de Futebol vivia uma fase babelesca, lus- trada no quarteto de técnicos que dirigia a Seleção, que desaguaria, dois anos depois, no fatal caso Saltillo, a que se congregava uma clara demarcação entre o norte e o sul no balneário, o talento revolucionário de Chalana, nada dado à arte da guerra e do conflito, por sempre ter preferido resfolgar em ninhos de paz e de amor, acabou por se manifestar como um polo aglutinador que conduziu Portugal às meias- -finais da competição, caindo aos pés da anfitriã França após um jogo homérico epilogado com uma reviravolta no prolongamento. A sua velocidade estonteante escoltada pelo virtuosismo ímpar nos dribles ziguezagueantes, o que o tornava esplendoroso no um contra um, e as ininterruptas deambulações entre os três corredores, concertando a sua ambidestria entre conduções alucinantes, passes aveludados e cruzamentos teleguiados, como os dois que foram o mote para finalizações vitoriosas de Jordão ante os gauleses, tornaram-no na figura maior de um certame que Platini cerrou com a conquista do título e nove golos no bornal. Numa altura em que os colossos do futebol europeu só podiam utilizar dois estrangeiros em simultâneo, Chalana tornou-se num alvo extremamente apetecível, até pelo salário relativamente baixo que auferia no Benfica, que, em diferentes momentos, esteve perto de perdê-lo para Sporting, Braga ou Boavista. Acabaria por ser o Bordéus, campeão francês em título, presidido pelo icónico Claude Bez e onde alinhavam Tigana, Giresse, Lacombe, Battiston e Dieter Müller, a afiançar a sua aquisição, num negócio avaliado em 220 mil contos, verba canalizada por Fernando Martins, então presidente do Benfica, para fechar o mítico Terceiro Anel, o espaço que mais brandia com o futebol indomesticável e gingão de Chalana. Mas importa não olvidar que para trás ficaram 9 estações de ouro, em que pulverizou, à época, todos os recordes, ao assumir-se como titular indiscutível das águias aos 17 anos, apontando 11 golos – e assinando bem mais de uma dezena de assistências, que, na altura, não eram contabilizadas – em 33 jogos, números que, em tão tenra idade, só Maradona, ao serviço dos Argentinos Juniors, superou. Junta-se, nesse período, a conquista de 5 dos 6 campeonatos nacionais que venceu pelos encarnados, avocando um papel deliberativo na resolução de vários embates diante de Sporting e de FC Porto, assim como a assunção do papel principal no relançamento europeu do Benfica, após as cinco finais da Taça dos Campeões na década de 1960, com a presença nas meias-finais da Taça das Taças em 1980/81, após ter decidido, com um passe de trivela para o fundo das redes, a dificílima eliminatória ante o Fortuna Dusseldorf nos quartos da prova, e, principalmente, a chegada à final da Taça UEFA em 1982/83, perdida para o Anderlecht.

CHALANA FOI UM POLO AGLUTINADOR QUE CONDUZIU PORTUGAL ÀS ‘MEIAS’ DO EURO’84

OPINIÃO

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2022-08-13T07:00:00.0000000Z

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