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SÉRGIO VASQUES

FILOMENA LANÇA DUARTE RORIZ

Isqueiros, cemitérios, cabarés ou bordados. Impostos em modo criativo. Um século dá para muita coisa e, neste caso, deu para acumular “um lastro imenso de taxas, contribuições, impostos, adicionais e percentagens”, cobrados em algum momento no tempo ou permanecendo por aí, ainda que com uma roupagem diferente. Sérgio Vasques, fiscalista, apaixonado por história, lembrou-se um dia de pedir aos seus alunos da Faculdade de Direito de Lisboa que fossem ver os impostos que haviam sido criados em cada ano. Essa recolha serviu-lhe de base para publicar agora o “Grande Dicionário dos Pequenos Impostos”, um livro que é também um retrato da nossa fiscalidade.

O amadorismo e a experimentação em matéria fiscal não são coisa que ocorra só hoje, já vem lá de trás.

O que se aprende quando se olha para trás no tempo e se encontram estes impostos de bagatela, como os batizou?

Aprendemos muita coisa útil. O modo como se produzem impostos em Portugal, os vícios e as dificuldades, a cultura de capela da Administração, a impreparação das nossas instituições, a resistência dos contribuintes, e, também, aquilo que foram os nossos valores ao longo de um século, em particular um tempo que foi dominado por um regime autoritário cujas opções estavam vertidas também na nossa fiscalidade. Desde os consumos que tributávamos aos setores económicos que queríamos proteger.

Como se ilustra essa cultura de capela de que fala?

Na administração central, por exemplo a criação de impostos para financiamento da construção de estradas, um dos mais bizarros, e que continuámos a manter, com a Junta Autónoma de Estradas e depois com a Estradas de Portugal. Vamos perpetuando essa tradição de cada entidade pública menor ter receitas próprias, muitas vezes totalmente incoerentes, com efeitos económicos perversos, mas que não eliminámos por resistência dos próprios. Tivemos nas estradas, no turismo e também ao nível da administração local, que foi talvez o nosso pior cancro.

Havia, por exemplo, um imposto para os cemitérios [1930].

Os municípios viviam com um défice crónico de receitas e portanto insistiam sempre junto da administração central, do Governo, para lançar derramas adicionais, tributos sobre o comércio local, sobre a exportação de mercadorias, enfim, as coisas mais variadas. E, por vezes, bizarras.

Fala em casos de impostos que nasceram de “lutas fiscais”?

Isso é um fenómeno que tínhamos no passado, como temos hoje. Quando se percebe que existe uma boa base tributável, todas as entidades públicas a disputam. E, portanto, há muito esse puxa-empurra. Quando se descobre, por exemplo, que os automóveis, os combustíveis são uma boa fonte de financiamento, há várias entidades públicas que vêm a correr para essa fonte de receita.

Fala muito em fiscalidade na forma tentada. É uma tradição portuguesa?

Continuamos a ter muito disso porque não conseguimos criar centros de conhecimento e instituições que nos permitam construir uma política fiscal com cabeça, tronco e membros. E, portanto, muitas vezes atiramos o barro à parede. Durante o Estado Novo houve muita trapalhada, muita tentativa e erro, silenciada pelo regime. Isto para dizer que o amadorismo e a experimentação em matéria fiscal não são coisa que ocorra só hoje, já vem lá de trás.

E há muitos que foram ficando, não é? Como o Imposto Extraordinário Sobre Algumas Despesas das Empresas [1983].

Essa foi genial. Surge nos anos 80 porque havia uma fraude fiscal generalizada no país. Não tínhamos administração capaz de controlar os contribuintes, nem grandes nem pequenos, atingimos um ponto de rutura, e esse imposto procurava ir atrás daquilo que seriam rendimentos de terceiros. Depois, manteve-se nas taxas de tributação autónoma e é uma importante fonte de receita. Apesar de hoje em dia já termos uma capacidade de controlo dos contribuintes muito maior do que nos anos 80.

Ou seja, à partida já não se justificariam?

À partida, pelo menos para esse fim, tem uma justificação muito mais frouxa. Agora, nós nestes momentos de crise, muitas vezes, ao puxar pela imaginação, encontramos coisas que depois ficam porque rendem, mesmo que se saiba que não são das coisas mais inteligentes e mais racionais.

E um tributo criado em tempo de crise, em 1983, com o FMI cá, foi o Imposto sobre as Boîtes e Cabarets [1983].

Essa é uma curiosidade muito engraçada. É a ideia de que os ricos também devem pagar a crise e, portanto, se tens tempo para ir à boîte e à discoteca, então paga lá um pouco mais. Porque na altura se tinha criado um pacote de austeridade muito pesado para a generalidade dos contribuintes. E esta é uma figura que serve de sinalização política. Nos momentos de crise, quem está no topo também vai fazer um pequeno sacrifício.

Na altura pensou-se também tributar os bares que fechassem tarde, como este em que estamos agora.

Esses escaparam, pela intervenção de um deputado do PSD do Algarve, onde ele tinha noção que tributar os snack-bares era um pouco diferente de tributar o cabaré. Porque o snack-bar emprega muita gente, como hoje, aliás, e, portanto, penalizar o setor era capaz de ser contraproducente.

Era a mesma lógica do Imposto sobre consumos supérfluos ou de luxo [1961]?

Esse surgiu quando rebenta a guerra colonial por duas razões fundamentais – para equilibrar a nossa balança comercial e para penalizar aqueles que têm um pouco mais de posses. E a experiência é interessante porque é a primeira vez que nós tributamos o retalho. Não tínhamos na altura nenhum imposto geral de consumo. O imposto de transações – o antepassado do IVA – só surge em 1966, mas não tributa o retalho. Neste, sim, fizemos a experiência de ir tributar os prestadores de serviços ao consumidor final. Obrigar as lojas a pagar pelas vendas de bens como os frigoríficos, secadores de cabelo ou batedeiras. Os eletrodomésticos eram um bem de luxo, o que mostra o nível de pobreza do país na altura. Do ponto de vista técnico, da política fiscal, foi interessante porque nos mostrou as limitações que tínhamos a controlar do retalho. E era muito difícil, porque na relação com o consumidor final há sempre o: “Quer com recibo ou sem recibo?”

A taxa sobre os filmes pornográficos [1976] seria mais fácil de controlar?

Essa surgiu para moralizar os costumes. Aliás, temos uma história engraçada na tributação da pornografia. Durante muito tempo, aplicávamos taxas de importação penalizadoras dos materiais em papel, impressos, e mantivemo-las depois no imposto de transações. E tínhamos uma taxa sobre a exibição dos filmes. A sala de cinema ia pagar 25 contos na semana de estreia e depois os bilhetes tinham um adicional de 100%. E o engraçado é que essa taxa surge já depois do 25 de Abril, porque se liberaliza a exibição desses filmes, mas ao mesmo tempo não se perde a moralidade de ir carregar sobre o consumidor. Está lá tudo.

Uma coisa bastante mais “soft”, os bordados da Madeira, também não escaparam a uma taxa [1935].

Essa era uma atividade muito importante na Madeira, sobretudo para a força de trabalho feminina e cria-se então, na altura, um imposto sobre a exportação dos bordados. Vai numa longa tradição corporativa que nós temos de tributar setores económicos determinados para promover a respetiva produção. Ao longo do século XX criámos uma série desses pequenos tributos para o bacalhau [1901], para a indústria, e esse aparelho, dos tributos parafiscais, foi ficando. E ainda hoje, passamos dessas pequenas taxas para as taxas de regulação das entidades independentes.

Por exemplo?

O setor bancário, florestas, distribuição, comunicação social. Mantivemos o aparelho tributário corporativo com uma alteração apenas de terminologia. E continuamos a ter uma tributação das empresas profundamente desigual, que é justificada também pela pressão de estas entidades terem receitas próprias que alimentem os seus orçamentos. Não sei se será sempre como na Madeira, para construir uma sede, mas nalguns casos também é para isso.

Nesta sua pesquisa, qual foi o mais bizarro que encontrou?

São vários. O Imposto de Selo sobre Isqueiros [1925] é muito bom, porque nos mostra o atraso em que Portugal vivia e o modo como as grandes empresas se relacionavam com o poder. Eu crio um imposto sobre os isqueiros para proteger a indústria fosforeira. E mantenho aquilo ao longo do século XX. Ainda nos anos 50 havia notícia dos fiscais, à porta dos hotéis na Avenida da Liberdade, à espera que saíssem os turistas com o isqueiro na mão para lhes aplicar a multa se não tivessem a licença. E havia pessoas que eram detidas por não terem pago o imposto. Isso mostra o que foi o nosso século XX em matéria fiscal.

Esse desapareceu, mas há aqueles que começam como extraordinários e se perpetuam no tempo.

Muitos, claro. Uma figura com outros contornos, mas que se mantém hoje, é a contribuição para o audiovisual. Trata-se da versão remodelada da Taxa de Radiodifusão [1933] que vem do Estado Novo, quando se queria controlar quem tinha aparelhos de rádio e o que é que ouvia. Isso manteve-se até hoje.

E continua a fazer sentido na era do “streaming”?

É uma grande discussão, claro. Mas o Estado está protegido, porque a contribuição para o audiovisual vale três ou quatro euros na conta da eletricidade e, portanto, não há interesse dos contribuintes individuais de contestar. Vai passando entre os pingos da chuva e ainda pondo as grandes empresas ao serviço do Estado na cobrança.

Encontrou casos de tributos criados

Nos anos 50 havia notícia dos fiscais, à porta dos hotéis na Avenida da Liberdade, à espera que saíssem os turistas com o isqueiro na mão para os multar.

A contribuição para o audiovisual vale três ou quatro euros na conta da luz, portanto, não há interesse dos contribuintes de contestar.

por razões punitivas?

Não é frequente termos uma fiscalidade punitiva, mas tivemo-la. Impostos lançados sobre setores económicos determinados ou sobre grupos sociais determinados, com uma função mais ou menos punitiva. Um exemplo foi o Imposto para Indemnização da Insurreição Monárquica [1919]. Havia uma lista negra de contribuintes que eram obrigados a pagar um imposto em especial para indemnizar as vítimas da insurreição. Mas temos outros exemplos. Como quando, após o 25 de Abril, criámos taxas fortemente punitivas sobre o setor das celuloses, das florestas, também o fizemos como uma espécie de resposta, de retribuição, aquilo que foi a proximidade desse setor ao regime durante muito tempo.

Portugal não será, certamente, caso único nesta criatividade fiscal

É claro que muitas destas coisas são cópias daquilo que se fez lá fora. O Imposto de Fachada [1920] foi uma prática, desde os tempos de Napoleão em França. Era cobrado e calculado pelo metro linear de fachada dos edifícios que confrontassem com estradas nacionais. E servia para alimentar a construção de estradas. É absurdo, mas dos outros também copiamos as coisas absurdas e até hoje a Infraestruturas de Portugal mantém fontes de receitas igualmente irracionais. Uma coisa que se percebe ao fazer este trabalho é o caos, o labirinto que sempre foi a nossa tributação local. E uma das grandes lições que daqui se podem extrair é que a descentralização, em matéria tributária, raras vezes funciona bem. E a regionalização é uma perspetiva que assusta quando olhamos para trás e pensamos no que se fez quando se atribuíram receitas tributárias próprias a entidades menores. O problema é que nunca ninguém tem a visão do conjunto.

Apesar de tudo, temos agora uma fiscalidade mais estabilizada?

Mais ou menos. Fizemos uma grande reforma nos anos 80, que limpou o sistema, mas nos últimos 20 anos começámos a desconstruí-la e hoje temos um sistema francamente caótico. Na tributação das empresas e mesmo ao nível do IRS, como hábito que temos do pequeno rodriguinho, nas retenções na fonte, nas deduções à coleta, tornou-se a fiscalidade completamente labiríntica. É preciso que haja um fio condutor, alguma coerência, e nós claramente não a temos. Perdemos essa âncora.

ENTREVISTA

pt-pt

2023-03-24T07:00:00.0000000Z

2023-03-24T07:00:00.0000000Z

http://quiosque.medialivre.pt/article/282449943270996

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