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Cheira a Glorioso

MANUEL S. FONSECA O AUTOR ESCREVE COM A ANTIGA ORTOGRAFIA

Apalavra “glorioso” aplicada ao SLB – sim, quando alguém diz “o Glorioso!” – não é qualificativo hiperbólico, mas sim uma forma humilde e escassa de nomear a realidade. Não me espanta que um pai ou uma mãe tenham orgulho de levar ao colo o seu filho ao Estádio da Luz, tal como Maria e José apresentaram Jesus, ainda menino, aos sábios do Templo. O Glorioso acabara de ganhar, por 5 a 3 ao Real Madrid, a segunda Taça dos Campeões Europeus. Eu vivia em Luanda e soube que o Benfica viria visitar-nos. O meu pai prometeu levar-me ao Estádio dos Coqueiros. O Benfica veio e lá fomos para o peão, então pouco mais do que um aterro. Ia ver o jogo aos ombros do Artur, meu pai, se queria ver alguma coisa, mas a alma benfiquista comoveu-se: os espectadores clamaram – o miúdo tem de ver o jogo com dignidade! – e, de mão em mão, sentaram-me no alto muro do estádio, com vista ampla para o pelado. A nação benfiquista de Angola, pegando em mim ao colo, pôs-me num trono, de onde vi, pela primeira vez, Eusébio, Coluna, Simões, a ganharem, por 5 a 3, como se Luanda fosse Amesterdão, à selecção local. O meu primeiro Benfica, entrou-me pelos olhos de menino – e nesses olhos ficará para sempre. Ora, poucos anos depois, de novo em Luanda, o Glorioso entrou-me já digo por onde. Eusébio tinha posto a Inglaterra a seus pés, naquele Mundial de que tanto me lembro dos seus golos como dessa lágrima de guerreiro que ele enxugou com a camisola de Portugal, no fim do injusto jogo com Inglaterra, o mais injusto dos jogos injustos. Eu vira tudo, em filme, no cinema Império, mas agora ia poder vê-lo, a ele, a Coluna, Torres, José Augusto e Simões, no velho estádio dos Coqueiros.

O mais velho Abílio, meu melhor amigo lá do bairro, trabalhava na DTA, a companhia de aviação de Angola, a quem cabia dirigir o aeroporto. Sportinguista embora, o meu amigo era de uma generosidade cristã, e disse-me: “Vem comigo e vamos esperar os teus jogadores à pista.” Fomos.

Saía-se do avião, não havia cá mangas a não ser as da camisa, e caminhava-se pelo asfalto até à gare, que era mesmo ali a 100 metros. O avião aterrou, puseram a escada e eles desceram, eram para aí umas 8 da noite, já Luanda tinha jantado.

O senhor Otto Glória e o senhor Coluna, o imenso Mário Coluna, vinham à frente. E logo a seguir, o senhor José Augusto, o senhor Simões e o senhor Eusébio. Eram todos senhores, de uma elegância irrepreensível. Os jogadores, esses jogadores do Benfica, vestiam-se bem. Fatos elegantes, gravatas alinhadas. Um bálsamo que dava asas à imaginação do olho humano.

E, no entanto, eis o que me deixou siderado: quando a porta do avião se abriu e eles começaram a descer, uma onda de perfume inundou a minha pituitária. O Benfica cheirava bem, aroma divino, e entrava-me pelo nariz.

Otto Glória e Coluna desciam das escadas e com eles avançava um fragrância que refrescava o capacete da húmida noite tropical. Eu não sei se era a Eau Sauvage da Dior ou se era a colónia da Avon, perfumes desse tempo. Eu inalei: cheirava a Benfica.

Aqueles jogadores tinham o que, na altura era o melhor que se podia dizer de um homem, tinham categoria. Encheram de perfume a noite africana de um miúdo que tinha a mania que era hippie e que queria um mundo melhor. Os meus mitos de saco-cama, semanas sem banho e muito cheiro a cavalo sofreram, à escada de um avião, o mais vigoroso desmentido. O mundo melhor, o melhor dos mundos, podia ser sauvage, podia ser floral, mas tinha de cheirar bem. Lição do Glorioso. Lição de classe.

A nação benfiquista de Angola, pegando em mim ao colo, pôs-me num trono, de onde vi, pela primeira vez, Eusébio, Coluna, Simões, a ganharem, por 5 a 3, como se Luanda fosse Amesterdão, à selecção local.

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2023-03-24T07:00:00.0000000Z

2023-03-24T07:00:00.0000000Z

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