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Os novos guardiões dos tesouros nacionais

FILIPA LINO flino@negocios.pt MÁRIO ANTAS, DIRETOR DO MUSEU NACIONAL DOS COCHES

Mário, Sandra, Nuno e Lurdes são pela primeira vez na vida diretores de um museu. Para uns, foi o concretizar de um sonho. Para outros, uma oportunidade que surgiu. Foram selecionados através de um concurso público internacional lançado pela Direção-geral do Património Cultural (DGPC) em 2020. Os novos guardiões dos tesouros nacionais “herdaram” instituições que ainda estão a recuperar do impacto da pandemia, que os fez perder visitantes e receitas. Todos os museus têm falta de recursos humanos e precisam de financiamento para restauro e conservação do espólio.

Hoje é segunda-feira e o Museu Nacional dos Coches, em Belém, está fechado ao público. Lá dentro, há trabalhos de limpeza e de conservação a decorrer. O ambiente calmo contrasta com o da véspera. No Dia do Pai, o museu esteve cheio de famílias.

Mário Antas, vem receber-nos. É um dos estreantes numa “fornada” de novos diretores dos museus nacionais. De facto, surgiram várias caras novas no concurso internacional, aberto em 2020 pela Direção- Geral do Património Cultural (DGPC), para o preenchimento de cargos de direção nos Museus, Monumentos e Palácios Nacionais.

Este antigo professor de história é novo na função, mas já conhece bem o meio museológico. Era técnico superior no Museu Nacional de Arqueologia e especialista em comunicação e educação em museus.

A sua ligação emocional ao Museu dos Coches começou aos 6 anos quando o visitou pela primeira vez com a escola. Ficou deslumbrado com o que viu no Picadeiro Real, as primeiras instalações do museu criado pela rainha D. Amélia. “Marcou-me o facto de ver tantos carros juntos e tão belos”, recorda.

Nessa altura, estava longe de imaginar que um dia seria o diretor do segundo museu mais visitado do país, logo a seguir ao Museu Nacional do Azulejo. Antes da pandemia, chegou a ter mais de 300 mil visitantes por ano. Em 2022, visitaram este espaço museológico pouco mais de 181.500 pessoas. A recuperação está a ser lenta e esse é um dos grandes desafios que tem pela frente – recuperar e ganhar públicos.

Assumiu a liderança da instituição a 1 de agosto de 2021 e sabe que é um privilegiado porque trabalha num museu novo, feito de raiz para albergar aquela que é considerada “a melhor e maior coleção de coches ao nível internacional”, que abarca veículos desde os finais do século XVI até aos finais do século XIX.

É aqui que está o coche mais antigo do mundo. Pertenceu ao rei espanhol Filipe II, em finais do século XVI e “foi feito para o monarca vir de Madrid até Lisboa, para a cerimónia de coroação do filho”, explica.

Num outro ponto do museu estão em destaque os três coches da embaixada. São peças icónicas do museu que foram construídas em Itália com uma missão diplomática.

Outras peças importantes são o landau do regicídio – que atualmente está no Palácio de Vila Viçosa –, onde foram assassinados o rei D. Carlos e o príncipe D. Luís em 1908 ou a carruagem da coroa que transportou vários monarcas de visita a Portugal.

Quando chegou ao museu, uma das primeiras coisas que fez foi um estudo de públicos. “Cheguei à conclusão de que a maior parte dos portugueses não vinha porque considerava que este era um museu para turista ver.”

Percebeu que tinha que desconstruir esta ideia feita. “O desafio era colocar os objetos a falar. Contar as histórias das personalidades que mandaram construir os coches e viajaram neles.”

Recentemente, quando morreu a rainha Isabel II de Inglaterra, houve muitas pessoas a visitar o museu – portugueses e ingleses – para ver a carruagem da coroa, encomendada em Londres, no século XIX, para o rei D. João VI. O motivo de interesse era o facto de ter sido utilizada pela última vez em 1957, quando a rainha Isabel II de Inglaterra visitou Portugal pela primeira vez.

Sendo este um museu sobre mobilidade, um tema bastante atual, é possível fazer pontes na história e relacionar o passado com o presente. Dá um exemplo. “No fim do século XIX, quando se passou dos veículos puxados a cavalos para os automóveis, o argumento era ambiental. Os cavalos faziam dejetos nas ruas e o motor de combustão era considerado uma solução amiga do ambiente. Agora, o argumento para a transição dos motores de combustão para os veículos elétricos é precisamente o mesmo – o ambiente.”

Nas oficinas do museu estão duas técnicas a trabalhar. Ao fundo restaura-se a moldura de uma pintura. A meio da sala, em cima de uma mesa, está um enorme manto acabado de restaurar, que foi doado ao museu pela rainha D. Amélia, em 1938, quando já estava no exílio.

Rita Dargent, trata da conservação preventiva no museu. Explica que o manto da rainha é feito em veludo rosa argenté e bordado a fio de prata. Esta obra de consolidação dos tecidos demorou dois anos e foi financiada pela Fundação Versailles, através do grupo dos amigos do museu. O manto é bastante pesado, diz a técnica, por isso “só foi usado pela monarca em duas cerimónias de gala”. Em breve, estará exposto no museu.

O mecenato é um dos elementos-chave para o restauro e conservação do espólio. O Millennium bcp tem sido um parceiro constante ao longo dos anos, mas há um fenómeno novo que surgiu depois da pandemia – os mecenas individuais. “Temos tido pessoas que vêm ter connosco, que se identificam com a coleção e que querem, dentro da lei do mecenato, contribuir”, revela. Uns dão dinheiro outros compram os materiais de conservação e restauro. Isso está a acontecer também com empresas estrangeiras sediadas em Portugal.

Também a aposta na diversificação das fontes de receitas está a dar resultados. Além da bilheteira e da loja do museu, o aluguer de espaços para eventos, como o Picadeiro Real ou o auditório, também é uma boa ajuda para as finanças da instituição. Recentemente, a cave do museu, onde está toda a parte de maquinaria, serviu de cenário a uma série da Netflix.

SANDRA LEANDRO, DIRETORA DO MUSEU NACIONAL FREI MANUEL DO CENÁCULO

A ligação emocional de Sandra Leandro com o Museu Nacional Frei Manuel do Cenáculo, em Évora, também começou cedo. A primeira vez que o visitou foi num passeio com a família e amigos.

Devia ter uns 8 anos e ficou com uma das peças gravadas na memória – o Fragmento de Friso Dórico com Páteras e Bucrânios, uma peça romana em granito do século I ou II d.c. “Aqueles crânios dos touros, os bucrânios, causaram-me alguma impressão pelo inusitado. Nunca tinha visto nada semelhante”, recorda a diretora do museu, situado em frente ao Templo Romano e ao lado da Sé da cidade alentejana.

A professora do departamento de Artes Visuais e Design da Universidade de Évora assumiu o cargo a 1 de abril de 2021. Foi o realizar de um sonho. “Esperei muito tempo que abrisse um concurso”, diz.

Cresceu convicta de que o seu caminho profissional passaria pela História de Arte, a sua grande paixão. E teve a sorte de ter como professor de história na Escola Secundária D. Pedro V, em Lisboa, o professor Álvaro Miguel Almeida, que levava os alunos pelo país para fazerem levantamento de património.

Sandra fala da coleção do museu com entusiasmo. “Consegue contar a história do Homem ocidental desde a pré-história até ao século XXI” e outra das coisas que “o torna especial é o facto de ser o único museu nacional a sul do Tejo”. À sua guarda tem importantes núcleos de Arte e Arqueologia, uma Coleção de História Natural e de objetos científicos, assim como tumulária, coleções relevantes de têxteis, ourivesaria e de mobiliário.

A diretora destaca a importância da pinacoteca do museu que abrange desde o século XV até ao século XXI. “Não são muitos os museus nacionais que têm uma pinacoteca que possa mostrar a história da pintura em Portugal de uma ponta à outra.” Também este museu ainda não voltou aos números pré-pandemia. Em 2019, visitaram-no quase 23.500 pessoas e em 2022 foram pouco mais de 18.700. Sandra acredita que o facto de Évora ter sido escolhida para Capital Europeia da Cultura em 2027, pode jogar a favor do museu. Mas isso não a tranquiliza quanto às necessidades imediatas da instituição.

Antes mesmo de assumir o cargo começou a inteirar-se dos problemas. “Herdei um museu com uma carência enorme de recursos humanos a todos os níveis, com problemas no edifício e com falta de equipamentos”, diz. Este é um museu que “precisa de grandes cuidados em termos de conservação e restauro e as condições de humidade e de temperatura não estavam a ser respeitadas”.

Uma das primeiras coisas que fez foi enviar à DGPC um relatório dos problemas que encontrou. “Vários deles, felizmente, estamos a conseguir resolver com a tutela”, sublinha.

Em matéria de recursos humanos, a DGPC lançou concursos e o assunto também está a caminho de ser resolvido. “Precisamos com urgência máxima de conservadores restauradores e de pessoas especializadas para o serviço educativo. Estas são as grandes prioridades.” Mas, além disso, também faltam assistentes técnicos, vigilantes e rececionistas.

O seu projeto para o museu passa por uma “programação dinâmica e variada”, que abranja vários tipos de público. Desde divulgação científica, poesia, apresentação de livros e colóquios sobre temas da atualidade.

Para ganhar novos públicos, sabe que tem de haver uma aposta na comunicação, sobretudo no digital. Desde que chegou, o museu intensificou a presença nas redes sociais e um dos pedidos que enviou para a DGPC foi a criação de um site na internet para o museu.

Quando terminar a comissão de serviço de três anos, que podem ser renovados, Sandra quer deixar feito um guia do museu, uma equipa reforçada e dinamismo na programação. No fundo, diz, “quero deixar o museu muito melhor do que o encontrei”.

NUNO MOURA, DIRETOR DO MUSEU NACIONAL DO TEATRO E DA DANÇA

O Museu Nacional do Teatro e da Dança é uma espécie de oásis em Lisboa. Instalado no Palácio do Monteiro-mor, no Lumiar, está rodeado por um Parque Botânico de 11 hectares, que é partilhado com o Museu Nacional do Traje. A paisagem verde e o chilrear dos pássaros proporcionam um ambiente de tranquilidade.

É neste espaço campestre, em plena cidade, que Nuno Moura trabalha desde agosto de 2021. Licenciado em gestão pelo Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa (ISEG), o novo diretor tem um currículo de 20 anos ao serviço de Direção- Geral das Artes, como técnico superior.

Recebe-nos num dia em que o museu está fechado ao público mas há muita coisa a acontecer. A equipa está a embalar peças para uma exposição do Teatro D. Maria II, que é inaugurada este sábado, 25 de março, em Águeda e que depois vai percorrer o país.

Foi ainda na universidade que Nuno se interessou pelo teatro e pisou as tábuas do palco. “Comecei a relacionar-me com o grupo de teatro universitário e fui ator, produtor… fazia tudo”, conta entre risos. O gosto pela arte da representação levou-o a fazer um mestrado em Estudos do Teatro. Foi nessa altura que teve mais

contacto com o museu, em cujos arquivos fez a pesquisa para a tese.

Quando abriu o concurso para a direção do museu decidiu candidatar-se. “Considerei que estava numa altura da minha vida em que podia abraçar outros desafios”, explica. Na altura, o seu trabalho era fazer a gestão de todos os procedimentos concursais da Dgartes para os apoios às companhias de teatro, de dança, etc.

Chegou ao Museu Nacional do Teatro e da Dança numa altura em que a instituição atravessava “uma situação complicada” porque tinha encerrado para obras ainda antes da pandemia. O facto de ter estado fechado tanto tempo “fez com que já não estivesse tão presente na memória das pessoas”. A recuperação de público também aqui está a ser lenta.

Além desse distanciamento do público, havia outros problemas a resolver. Nuno “herdou” uma equipa envelhecida. “Só no primeiro ano perdi duas ou três pessoas que se reformaram e a dificuldade de substituição dentro da função pública não permitia a sua substituição imediata. Mas, entretanto, fomos compensando algumas dessas faltas.”

Desde que se tornou diretor, a dinâmica do museu passou muito pela promoção ou envolvimento em exposições dentro e fora das instalações, muitas delas feitas através de parcerias. Só no ano passado foram organizadas cerca de 12 mostras, com parceiros como o Teatro São Luiz e a Câmara Municipal de Lisboa, como aconteceu nas comemorações dos 100 anos do Parque Mayer.

Uma das exposições mais relevantes foi sobre Gil Vicente, o pai do teatro português, que foi inaugurada em Espanha e que virá em outubro para o museu. Neste momento, Nuno Moura está a tentar negociar um projeto de mecenato para viabilizar esta mostra “porque é muito grande e precisa de um financiamento adicional para tudo aquilo que temos em mente, nomeadamente para chegar a outro tipo de públicos”.

O acervo do museu vive muito de doações de pessoas ligadas ao espetáculo. Não só de artistas como Eunice Munõz ou Amélia Rey Colaço, mas também do público. O senhor Magalhães, considerado o “espectador número 1”, cujo busto está no museu, é um dos grandes doadores. Falecido em 1999, cedeu o seu espólio ainda em vida. “Foi um dos pilares da fundação do museu. Ele ia ver todos os espetáculos e guardava tudo. A certa altura, era tão conhecido no meio artístico que ia aos espetáculos gratuitamente e tirava fotografias a partir da plateia.”

Ao entrar na primeira sala, o visitante depara-se com a cadeira (que mais parece um trono) de Almeida Garrett. Foi ele que “criou a lógica do teatro tal como a concebemos hoje”, refere o diretor. Deve-se ao escritor e dramaturgo do século XIX a profissionalização da arte da representação com a criação do Conservatório Nacional de Teatro e também a instituição do Teatro Nacional D. Maria II. E são da sua autoria peças de teatro icónicas como “Frei Luís de Sousa”.

Ao longo das várias salas do museu estão expostos cartazes, pinturas com retratos de artistas, um fato que Amália que usou em palco, adereços de peças e maquetas de teatros. No piso superior estão outras áreas temáticas – cenografia, iluminação, marionetas, teatrinhos de papel e a parte dedicada à dança, onde se destaca um fato usado pelo bailarino e coreógrafo Benvindo da Fonseca. Sendo este um edifício do século XVIII são constantemente necessárias obras de manutenção. Nuno Moura está a contar com uma verba para esse fim no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR).

Neste momento tem “uma equipa bastante simpática” de 15 pessoas e alguns estagiários mas precisava de mais “braços” para a conservação e o tratamento do acervo. Através de um protocolo entre a DGCP e da FCT conta também com um grupo de investigadores “que ajudam a pensar o espólio”. Mas do que precisava mesmo era de espaço para os depósitos e para expor porque o museu “tem muitas histórias para contar”.

REPORTAGEM

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http://quiosque.medialivre.pt/article/281818583078484

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