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BRUNO FARIA LOPES

BRUNO FARIA LOPES Artigo em conformidade com o antigo Acordo Ortográfico

Nadar nu é mais difícil quando a maré é baixa

Uma crise de confiança na banca, como a que teve início nos Estados Unidos, é sempre uma oportunidade para nos lembrarmos do gelo fino em que um banco opera. “Os bancos são máquinas que transformam depósitos seguros em investimentos com risco”, escreveu há dias Matt Klein, autor da newsletter “The overshoot”. Um aspeto chave dessa transformação é, claro, o valor dos investimentos, essencial para a credibilidade da promessa de que se pagará aos depositantes. Outro Matt – o Matt Levine, da Bloomberg – nota que “um banco é uma coleção de estimativas sobre a avaliação” dos seus investimentos ou ativos. Em tempos normais ninguém põe muito em causa estas avaliações mas, mais tarde ou mais cedo, há um momento em que a pergunta é feita com maior premência – uma venda feita em stress pelo Sillicon Valley Bank (SVB) foi esse momento.

O SVB foi obrigado a vender parte da sua carteira de obrigações para poder pagar aos depositantes, sobretudo empresas de tecnologia, que começavam a querer usar o dinheiro em excesso que ali tinham posto na pandemia. Essa carteira de obrigações mergulhara em perdas profundas depois da subida abrupta das taxas de juro pela Reserva Federal, mas no balanço não se via nada disso – os bancos não estão obrigados a marcar as obrigações pelo seu valor de mercado. Caso não precisasse de vendê-las no mercado secundário, o SVB podia deixá-las correr até à maturidade. Quando as vendeu, contudo, o banco materializou essa perda e seguiu-se um pânico muito à Sillicon Valley, alimentado pelas redes sociais.

Podemos dizer que o SVB tinha má gestão – ignorou os alertas de um consultor contratado para avaliar o sistema de risco –, mas para o mercado a questão não se esgota aí. A pergunta passa a ser: “o que está mergulhado sob os números dos balanços nos outros bancos, sobretudo os mais pequenos e frágeis?”. A pergunta, alimentada pela perda de confiança, tem depois tendência a alargar-se: “O que está nos balanços dos bancos e das seguradoras depois de anos e anos de taxas de juro negativas, que adormeceram o escrutínio e incentivaram a tomada de riscos maiores para ter retorno?”.

É na resposta a esta pergunta que estamos hoje, no fundo repetindo a máxima de Warren Buffett: “É quando a maré baixa que vemos quem está a nadar nu”. O receio inerente à pergunta começou por levar a uma crise de confiança nos bancos mais pequenos e frágeis dos EUA, mas não ficou aí – há quem esteja a nadar nu noutras paragens e arrisque ser exposto com a descida da maré monetária. Na Europa, o Credit Suisse era um candidato óbvio à exposição, minado financeiramente e do ponto de vista da imagem por uma sucessão de escândalos financeiros, que refletiam uma cultura que não queria mudar (António Horta- Osório que o diga).

Se quisermos encontrar algum conforto no meio da incerteza há alguns pontos a reter. O SVB era ostensivamente mal gerido, com uma administração mais “woke” do que profissional. O Signature Bank aventurara-se sem tino nas criptomoedas. E o Credit Suisse não só foi mal gerido, como acabou por atrair maus acionistas (foi o Saudi National Bank que detonou a crise ao dizer que não poria no banco mais um cêntimo – os sauditas acabaram a perder mais de mil milhões de dólares). São instituições que estavam mesmo a pedi-las num contexto económico em mudança rápida. Outro ponto de conforto está na ação rápida e sem hesitações dos reguladores, que aprenderam em 2008 o valor de estancar o mais cedo possível uma crise de confiança.

Se quisermos procurar ainda mais conforto, pensando em Portugal, podemos notar que os bancos portugueses estão mais confortáveis do que em qualquer ponto no último quarto de século, tendo atraído uma base de depósitos recorde (mesmo depois das perdas para os Certificados de Aforro). Esta base permite à maioria das instituições não ter de pensar noutras fontes de financiamento, que por esta altura estarão mais caras (sobretudo depois do resgate ao Credit Suisse ter queimado por completo os detentores de obrigações convertíveis, um instrumento usado na Europa para compor rácios de capital regulamentares – o BCP, por exemplo, usa-o). Podemos, também, notar que não está nas cartas uma degradação económica tão forte que leve a um aumento preocupante das perdas com créditos.

Mas, mesmo com estas razões para algum conforto, as implicações da pergunta que está a ser feita não deixam de assustar: quanto valem realmente as aplicações dos bancos e das seguradoras? E qual será a reação colectiva à resposta a esta pergunta? A aversão ao risco é hoje o sentimento dominante e todas as instituições financeiras – incluindo as portuguesas, que também têm carteiras de obrigações a sangrarem discretamente nos seus balanços –, terão de medir muito bem a sua comunicação com o mercado e com as agências de rating. A incerteza económica, que começara a recuar ligeiramente nos últimos meses, voltou a aumentar muito – e é difícil não ouvir o gelo a rachar-se. Aguentará?

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2023-03-24T07:00:00.0000000Z

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