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A austeridade “versus” a jurisprudência da crise

BRUNO FARIA LOPES

Entre 2010 e 2014, a governação teve uma característica particular além do contexto de emergência: o facto de Portugal estar no euro impediu o país de usar a desvalorização cambial (e a consequente inflação alta que se lhe seguiria) para reequilibrar as contas externas e as finanças públicas. O governo do PS, primeiro, e o do PSD/CDS, depois, tiveram de ser duros sem anestesia, impondo cortes directos no rendimento dos funcionários públicos e dos pensionistas. No plano da natureza das medidas isto tornou aquela crise diferente das duas crises anteriores resolvidas sob tutela do FMI.

A política respondeu a estes cortes nominais no rendimento com o envio de vários diplomas para o Tribunal Constitucional (TC). O resultado foi o surgimento da chamada jurisprudência da crise, fixada numa série de acórdãos do TC sobre medidas de austeridade. Recorrendo a uma trindade de princípios basilares – o princípio da proteção da confiança, o da proporcionalidade e o da igualdade –, o TC foi diminuindo progressivamente a sua tolerância sobre os cortes directos no rendimento dos pensionistas e dos funcionários públicos. O tribunal considerou que cortes nominais só eram aceitáveis em contexto de emergência financeira e que, mesmo nesse contexto, teriam de ser equilibrados e transitórios.

Chegados a 2022 temos outra experiência económica inédita nos últimos 30 anos: uma inflação próxima de 8% este ano e ainda alta no próximo. O contexto recomenda prudência orçamental, mas não é de emergência. A execução orçamental corre de vento em popa (a inflação ajuda), a economia está a crescer (embora esteja a deslizar para uma recessão) e no mercado de dívida a pressão tem sido contida ( há hoje uma rede do BCE, algo que não havia em 2011). Neste cenário, o Governo prepara medidas de austeridade de outra natureza: a imposição de perdas de rendimento em termos reais. Estas acontecem quando, por acção ou omissão, o Governo não acompanha a taxa de inflação nas actualizações salariais e de pensões.

Estas perdas não estão ainda seladas, mas os sinais apontam para que sejam relevantes. Nas pensões, o artifício da meia pensão paga como complemento extraordinário significará, caso nada mude, uma perda em termos reais equivalente a meia pensão a partir de 2024. Nos salários do Estado, depois de uma perda pesada num ano de inflação superior a 7%, o valor de referência de 2% indicado por António Costa para 2023 (ainda sujeito a negociação) prenuncia uma nova perda em termos reais – esta perda acumulada, e permanente, deverá ser superior a um salário anual (ou a um subsídio de férias, usando uma unidade de medida do tempo da troika).

A questão da conformidade constitucional das medidas de austeridade tomadas neste contexto merece, por isso, debate. No espaço de uma década teremos uma oportunidade única, quase de laboratório, para perceber como os especialistas em Direito

O uso do artifício da meia pensão para baixar a base de incidência da actualização para 2024 não violará o princípio da protecção da confiança?

Constitucional encaram a austeridade quando é feita por via de cortes nominais ou por via de cortes reais no rendimento. Um exemplo: o uso do artifício da meia pensão para baixar a base de incidência da actualização para 2024 (uma acção directa do Governo com impacto relevante no rendimento dos pensionistas) não violará o princípio da protecção da confiança? Nas conversas que tive com constitucionalistas para fazer este artigo – sendo que cada jurista é a soma do domínio da lei com o seu posicionamento ideológico – notei que a questão das pensões não tem uma apreciação consensual (o caso dos salários é distinto: como não há uma lei que obrigue à actualização, o Governo age por omissão e, aí, o TC tem menos margem para chumbar).

O leitor mais atento terá reparado que usei a palavra “debate” e não “teste” no parágrafo anterior – um teste seria a apreciação pelo TC da medida das pensões. Fi-lo porque não é só a natureza da austeridade que é diferente. As circunstâncias políticas também são. A primeira está na menor vontade ou capacidade de envio de diplomas para TC: o PCP e o BE não têm deputados suficientes (nem aliados na bancada do PS) para o fazer; a actual provedora de Justiça foi das juízas-conselheiras que mais contestou (e bem) as decisões do TC sobre as pensões; e o Presidente da República é, ainda, um aliado do Governo.

No Parlamento, sobra o PSD, um partido fatalmente ferido do ponto de vista eleitoral junto dos pensionistas, no qual alguém já deve ter pensado na viabilidade de um desafio constitucional quando estiver confirmada a actualização para 2024. Esse desafio seria arriscado do ponto de vista da imagem de um partido que cortou pensões, mas já sabemos como funciona a política. Seria também arriscado do ponto de vista constitucional, desde logo porque, para muitos juristas, a ilusão de um corte real (que coexiste com uma subida da pensão ou do salário) seria difícil de desmontar. O empobrecimento em termos reais não é muito diferente do outro, mas o seu formato baralha muita gente.

A questão aqui levantada pode parecer uma “intelectualice”, mas é mais do que isso. Do ponto de vista político e social, é menos difícil impor um empobrecimento significativo se o contexto for de inflação. Mas, também do ponto de vista constitucional, será muito mais fácil ao actual Governo conduzir este tipo de austeridade, num contraste interessante com parte da jurisprudência da crise. É tanto assim que, como aqui notei na semana passada, o primeiro-ministro até pode ir à televisão dizer às pessoas que a inflação deste ano é “atípica” e transitória, enquanto lhes impõe perdas permanentes. Está a enganar quem o ouve – incluindo, provavelmente, aqueles juízes do Constitucional para quem as perdas na crise anterior só podiam ser transitórias.

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2022-09-30T07:00:00.0000000Z

2022-09-30T07:00:00.0000000Z

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