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O início do derretimento populacional

No arranque de 2018, a edição europeia da revista online Politico entrevistou um embaixador da Letónia cujo posto não era de representação diplomática noutro país – era de representação junto da diáspora letã. A adesão do país à União Europeia em 2004 desencadeou uma vaga migratória massiva que, combinada com o declínio da natalidade, vaporizou um quinto da população nas últimas duas décadas. O Politico chamou à Letónia “a nação em desaparecimento”, um epíteto que o embaixador não disputou e que assenta, também, à vizinha Lituânia.

Os dois países bálticos – que vêm de um passado na esfera da União Soviética, têm salários baixos e gerações mais novas qualificadas – lideram as perdas de população no universo da Zona Euro na última década. Logo a seguir vêm dois membros do “Sul”: Grécia e Portugal. Os números dos Censos 2021 divulgados esta semana pelo INE põem a população portuguesa ligeiramente acima do que consta na base de dados do Atlas Migratório da Comissão Europeia, mas não mudam o cenário: numa Zona Euro em que só um saldo migratório largamente positivo parece travar a queda da população nos países mais ricos, os que são menos ricos e mais periféricos têm muitas dificuldades em evitar o declínio demográfico.

As placas tectónicas da demografia movem-se a ritmo glacial e seguro de prever e, em Portugal, já é visível o início do derretimento populacional. A queda de 2% da população desde 2011 – cerca de 214 mil pessoas – marca a primeira redução entre Censos desde a década de 60, que teve a emigração massiva que conhecemos. Usando a base de dados da Comissão Europeia, vemos que Portugal é na Zona Euro o quarto país do euro com maior quebra populacional e o sétimo na União Europeia a 27 – um universo que, além dos bálticos, inclui alguns países de leste onde a perda é também forte. É neste clube que, demograficamente falando, nos incluímos. A demografia pode ser a menos incerta das ciências sociais – sabemos que as crianças nascidas hoje vão ser população adulta em 2050 –, mas prever os seus impactos já é terreno mais movediço. Ainda assim parecem existir algumas teses convergentes sobre uma quantidade variada de impactos. A descida da população pesa sobre o mercado de trabalho e sobre o crescimento económico no longo prazo, a menos que os ganhos da tecnologia mais do que compensem o impacto negativo; pesa naturalmente sobre o erário público no campo da despesa social, da Saúde à Segurança Social (sobretudo os sistemas de financiamento como o nosso, de “pay as you go” – ou “pray as you go”); pesa sobre a eficácia e o próprio impacto da política monetária dos bancos centrais, sendo que uma das razões para os economistas preverem que os juros continuem baixos durante muito tempo é precisamente o impacto estrutural da demografia na economia.

Na política, a mudança gradual e inexorável da idade dos eleitores tem também efeitos fortes – um deles, em parte já visível hoje, é a orientação da política para beneficiar os mais velhos (que votam tendencialmente mais) nas políticas públicas. O acolhimento de imigrantes para compensar a força de trabalho em declínio é também um factor com potencial para alterar o panorama político, algo visível em vários países europeus mais ricos – de França à Alemanha, passando pelos Países Baixos e Itália – que têm compensado com mão-de-obra imigrante a queda da natalidade. Nesta descrição sumária, e muito por defeito, de impactos faltam ainda os sociais e culturais: do impacto de uma geração adulta dominada por filhos únicos à alteração profunda na estrutura familiar.

Muitos destes impactos representam uma quantidade enorme de desafios à política pública (e aos privados, dos trabalhadores aos donos de negócios). Quando a ministra da Coesão fala na necessidade de acolhermos mais imigrantes para a fase de investimentos públicos que aí vem, ela está a abordar uma ponta do problema demográfico, numa perspectiva imediata. Os desafios para Portugal, país que segue no grupo que lidera o declínio demográfico – e que, como os países desse grupo, não consegue reter os seus cidadãos nem atrair estrangeiros em quantidade suficiente –, são bastante mais profundos do que isso. Nós somos, afinal, um país que oferece poucos caminhos para a prosperidade e que ainda “exporta” muita gente. Quando se fala no declínio demográfico talvez se devesse começar por aqui.

As placas tectónicas da demografia movem-se a ritmo glacial, mas em Portugal, já se vê o derretimento.

PODEROSOS

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2021-07-30T07:00:00.0000000Z

2021-07-30T07:00:00.0000000Z

http://quiosque.medialivre.pt/article/281745567424836

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