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MARIE-CLAIRE E AS OUTRAS VÍTIMAS

A história de Marie-Claire Silvestre começou no presbitério, numas férias de verão da sua infância.

Por Fernanda Cachão

A menina molestada pelo tio, que era padre, é uma entre os 330 mil casos de abusos sexuais cometidos por clérigos e leigos em França durante 70 anos. O número e a forma como reiteradamente foram praticados ao longo de décadas põe em causa todo o edifício da instituição (quem calou este inferno, afinal?) e obrigou o Papa Francisco a uma pungente declaração “Desejo exprimir às suas vítimas a minha tristeza e a minha dor pelos traumas que sofreram, a minha vergonha, a nossa vergonha.” O jornalista Fernando Madaíl relata os contornos de um dos maiores escândalos sexuais de sempre e o calvário privado de Marie-Claire, cujo irmão, abusado, se tornou ele próprio abusador.

Àsombra das paróquias e perante o silêncio das catedrais, a dimensão do escândalo sexual no clero francês superou as previsões mais graves: 330 mil vítimas de crimes de

pedofilia cometidos desde 1950, estimando-se que 216 mil abusos tenham sido perpetrados mesmo por clérigos e os restantes por “leigos em missão eclesial” (um universo que contempla do professor de um internato a um chefe dos escuteiros). A contagem dos predadores oscila entre os 2900 e os 3200 padres e outros membros da Igreja Católica e parece que a maior incidência foi em rapazes na faixa etária dos 10 aos 13 anos.

“Fomos confrontados com o mistério do mal”, declarou o presidente da Commission Indépendante sur les Abus Sexuels dans l’Église (CIASE), Jean-Marc Sauvé, no dia 5 de outubro, ao apresentar as conclusões de três anos de trabalho, registados no relatório com 485 páginas – a que se juntam outras 2500 de apêndices, com depoimentos de cerca de 6500 vítimas (250 das quais ouvidas presencialmente, em entrevistas de duas horas).

Deste rol fazem parte personalidades como o padre jesuíta Patrick Goujon, professor universitário, historiador e teólogo, que publicou o livro ‘Priere De Ne Pas Abuser’ (ed. Le Seuil), ou o ator Laurent Martinez, que denunciou esse seu passado na peça teatral ‘Perdão?’, estreada no Festival de Avignon, em 2019; figuras que se evidenciaram, entretanto, por estarem ligadas a associações de denúncias destes crimes, como François Devaux (‘La Parole Libérée’) ou Olivier Savignac (‘Parler et Revivre’); mas, sobretudo, uma legião de anónimos, que conseguiram superar a vergonha e decidiram testemunhar.

Mesmo assim, ainda haverá muita gente em sofrimento, com repulsa, culpa e transtorno, que prefere esconder e/ou esquecer aquele pesadelo. E, do outro lado, hipocrisia, dissimulação, cumplicidade, proteção – embora um decreto papal de Francisco, datado de 2019, obrigue todo o eclesiástico a revelar qualquer delito aos seus superiores

Demorou quase 50 anos até que eu pudesse testemunhar

MARIE-CLAIRE SILVESTRE, VÍTIMA

SUMÁRIO

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2021-10-17T07:00:00.0000000Z

2021-10-17T07:00:00.0000000Z

http://quiosque.medialivre.pt/article/283798561945746

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