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UM ÚLTIMO OLHAR

Le Carré podia ter-se despedido com um desabafo. Preferiu um livro que desperta o que há de melhor nos seus leitores

O livro começa quando tem de começar–napágina20arrancaadescrição de uma livraria e do terrível trabalhodoslivreiros,“encaixotando os livros não vendidos para serem devolvidos aos editores” depois de “somar as parcas receitas do dia”. E então percebemos que aquele mundo – que terá espiões (que simulam abandono ou convalescença, sabedoria ou grandeza, ilusão ou alheamento) e mais espiões, mas também vários tipos de passado que arrancam recordações inesperadas – nos diz respeito, não só pelo cenário escolhido pelo autor, mas também pelo tom de proximidade que decidiu escolher para falar aos seus leitores. Porque ‘Silverview’ não é só o derradeiro livro de John Le Carré, editado e publicado depois da sua morte; é um despertador que nos lembra a existência de toda a sua obra, vasta e inclinada sobre um pormenor essencial de qualquer obra de ficção: o segredo. Ou seja, o que está escondido sob as aparências por gente habituada e treinada a fabricar essas (e outras) aparências.

Arte do romance

É muito estranho, para um leitor de John Le Carré, escrever sobre o seu novo livro sabendo que não voltará a haver outro e que, mesmo este, se deveu não a um golpe de sorte, mas a uma decisão prévia do autor: deixar o manuscrito à beira de estar terminado, entregue ao filho, para ser publicado. O resultado é fascinante: nota-se a mão cavalheiresca de Le Carré, as suas obsessões políticas, o seu desejo atormentado (que já vem de ‘Um Espião Perfeito’) de deixar resolvido “um certo número de coisas”, o modo como quer voltar a lidar com o passado dos serviços secretos britânicos, a necessidade de revisitar o espírito das suas personagens nos últimos livros – a partir de ‘O Fiel Jardineiro’ sobretudo, quando Le Carré ajusta definitivamente contas com o país e o seu remorso.

A generosidade de John Le Carré acompanha-o até ao fim, até ao último livro; não o ‘bom feitio’ (que não tem), mas a generosidade, a crença em qualquer coisa fatal no espírito de tudo aquilo que escreveu. Não “literatura de espionagem”, como disseram alguns patetas na altura da sua morte – mas uma arte do romance construída sobre as ruínas e as esperanças da Europa. ‘Silverview’ – que é o nome de uma pequena vila onde tudo isso há de desembocar – é o lugar onde as ruínas continuam a ver-se; o lugar onde Le

Carré deixa um derradeiro sinal, um derradeiro monumento. Digo “monumento” propositadamente; é isso, afinal, o conjunto da sua obra – um monumento decisivo para a nossa literatura e para a nossa vida. Por isso, ‘Silverview’ é tão necessário para ambas as coisas.

IMPERDÍVEL

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2021-10-17T07:00:00.0000000Z

2021-10-17T07:00:00.0000000Z

http://quiosque.medialivre.pt/article/283712662599826

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