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Descartar o Qatar?

Ofutebol é, claro, mais do que um jogo. Dos tempos idílicos e amadores tornou-se a continuação do poder político-económico por outros meios, e costuma apontar-se a perturbante transformação de alguns jogos, mesmo menores, em guerras civis.

No Mundial do Qatar, regressa tudo isso em catadupa. E mais.

Por um lado, interessa perceber o que é o sítio. Descolonizado só em 1971, a partir do trono britânico, o novo reino peninsular havia antes sido administrado pelos soberanos regionais do costume: Arábia Saudita e Turquia.

A monarquia qatari teve o trajeto de quase todos os regimes sucessórios, partindo do absolutismo para o que se apelida, algo pitorescamente, “semiconstitucionalismo”. Por outras palavras, limitação do poder real e progressiva concessão de direitos fundamentais, mas sem revoluções.

Essa transformação a partir do topo teve um episódio de quase rutura em 1995, com o golpe palaciano em que o príncipe Hamad derrubou o pai, Khalifa, mas ficando a “democratização” sempre como um assunto a decidir pela família reinante Al Thani. O atual monarca subiu ao poder depois de um anúncio televisivo, algo súbito, de abdicação do seu progenitor. Como se os parricídios fossem evitados pelo amor filial, pelo bom senso e pelas conveniências.

Os últimos 20 anos marcaram mudanças estratégicas vitais. Aliado costumeiro da NATO, com importantes bases americanas e britânicas no seu território, o Qatar tornou-se muito próximo de França, da defesa aos investimentos, da cultura e da moda à divulgação da língua. E ensaiou uma controversa, arriscada, mas em

geral bem-sucedida política de “terceira via” face ao Irão e aos aliados naturais de Washington na região, a saber a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos e o Egito.

Com isso envolveu-se numa tentativa de mediação internacional em diversos conflitos árabes e africanos, e ao mesmo tempo ensaiou um diálogo discreto com grupos tidos como “fundamentalistas”, mas dispostos a abandonar ou não apoiar a “jihad armada”.

O que por sua vez levou a casa reinante a ser sancionada por uma aliança político-militar conduzida por Riade, com momentos de quase guerra.

Numa das Conferências de Doha, que, com a criação da Al-Jazeera, passaram também a ser um sinal de uma alegada atitude cosmopolita, aberta e “inovadora” do Médio Oriente, lembro-me de ter passado noites de discussão em salas, hotéis e bares povoados de “influenciadores” israelitas, dos Estados Unidos, russos e turcos, elementos da Irmandade Muçulmana expulsos do Egito, rebeldes sírios anti-Assad, elementos das oposições iranianas e protagonistas das “revoltas árabes” iniciadas na Tunísia.

A aproximação à Turquia tornou-se também interessante nos últimos tempos, assim como a verificação de que o desenvolvimento interno foi galopante, se comparada com países da área, igualmente ricos em petróleo e gás natural.

Não há maneira de descartar as graves acusações sobre abusos de direitos na monarquia. Mas o grande problema do Mundial é, do ponto de vista do futebol puro, o facto de ser esta uma nação sem interesse nesse desporto. Autocráticos ou liberais, quase todos os países que até agora foram base dos campeonatos tinham uma paixão por este jogo, com adeptos verdadeiros, não arrendados, e tradições firmadas, não meros caprichos palacianos.

Por fim, as alegações de corrupção na atribuição das organizações.

Infelizmente, tornaram-se comuns nas últimas décadas, e as sequelas criminais de tudo isso continuam em curso. Se as federações da FIFA vivessem só de capitais privados, seria feio mas menor. O problema é que envolvem também muitos tesouros públicos.

PS – A propósito, circula em círculos seletos uma recente conta de restaurante lisboeta, para quatro pessoas, de mais de nove mil euros. Sem NIF. Se for despesa privada, mesmo obscena para o olho nu, não há discussão. Se se tratar de gasto público, em tempo de aperto, crise e desgaste, há. ●

Opinião

pt-pt

2022-11-24T08:00:00.0000000Z

2022-11-24T08:00:00.0000000Z

http://quiosque.medialivre.pt/article/282656101460586

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