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Cinema

O canadiano David Cronenberg regressa à sua obsessão por corpos mutilados e hedonismos bizarros. Crimes do Futuro, que estreia esta quinta-feira nas salas, são happenings num mundo pós-humano.

Por Pedro Marta Santos

A estreia do novo filme de David Cronenberg, Crimes do Futuro

Crimes do Futuro sobressalta e altera a nossa perceção do mundo, deixando-nos vislumbrar uma versão alternativa – tão radical como verosímil – do segundo quartel do século XXI

DAVID CRONENBERG é o mais importante cineasta contemporâneo, ponto. Permitam a veleidade do autoplágio (Guia Terapêutico de Cinema, Guerra e Paz, que publiquei em 2007): “Os seus filmes exploram as fronteiras do que é ser humano, transformando as maleitas do cérebro em metástases do corpo, questionando e recompondo a síntese de carne e tecnologia, mutação e libertação, levando a arte à medicina, a psiquiatria à estética, os limites da vida ao fim do cinema.” O canadiano, prestes a completar 80 anos, foi estudante de Entomologia (a ciência dos insetos) e desde a estreia com Stereo, em 1969 e, sobretudo, das obras maduras a partir de Videodrome – Experiência Alucinante (1983), busca, numa avidez e rigor estético inigualáveis, os limites do corpo, dos instintos, do desejo, no que esses limites convidam à cópula carnal com as máquinas e o bicho numérico.

Se é verdade que todos os realizadores maiores dirigem sempre o mesmo filme, Crimes do Futuro, que agora estreia nas nossas salas (era já o título da sua segunda longa-metragem, há meio século) regressa às proverbiais obsessões cronenberguianas: o buraco negro no horizonte de eventos da civilização, onde espiralam os medos e desejos mais profundos e o apelo sedutor da cinematografia clássica é violado com requinte fetichista, mas a languidez erótica continua.

Crimes do Futuro, como os pináculos deste cineasta único (A Ninhada, A Mosca, o magnífico Dead Ringers – Irmãos Inseparáveis) ou certos trabalhos “menores” (O Festim Nu, eXistenz), sobressalta e altera a nossa perceção do mundo, deixando-nos vislumbrar uma versão alternativa – tão radical como verosímil – do segundo quartel do século XXI.

Saul Tenser (Viggo Mortensen, lúgubre como uma mortalha humana) é um artista cuja performance consiste em

remover órgãos novos e únicos que crescem no seu abdómen como tumores, em happenings de cirurgia executados ao vivo numa mesa de autópsias mutante pela parceira Caprice (Léa Seydoux, sublime estranheza).

É um mundo pós-humano, onde a dor ou as doenças infecciosas desapareceram do quotidiano (derradeira ironia neste filme tenebroso, mas pintalgado de humor) e uma criança é assassinada pela mãe porque começa a comer plástico – onde acabam os indivíduos e começam os monstros sem classificação? Não há apaziguamento, só uma escada de Escher de prazer: mulheres belas mutilam a face com bisturis; pintoras serram as pernas como estímulo sexual; beija-se e lambe-se feridas com fechos-éclair, em gemidos de um fellatio metálico, e o interior do corpo é a nova paisagem da beleza do horror – Saul Tenser e Caprice são

doppelgangers do par James e Catherine Ballard (James Spader/Deborah Kara Unger) em

Crash, e os comandos semiorgânicos ou os instrumentos de platina que o duo usa poderiam ter sido inventados pelos gémeos ginecologistas Elliot e Beverly Mantle (Jeremy Irons) de Dead Ringers – Irmãos Inseparáveis.

Mas se a esperança do real há muito morreu na sala de operações, resta a crença no cinema. No fim, em preto e branco sumptuoso, Saul Tenser solta uma lágrima de fé, formulando-se alter ego da Falconetti n’A Paixão de Joana D’Arc, de Carl Dreyer. O círculo do inferno está completo. ●

Não há apaziguamento, só uma escada de Escher de prazer: mulheres belas mutilam a face com bisturis e o interior do corpo é a nova paisagem da beleza do horror

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2022-11-24T08:00:00.0000000Z

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