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Por Maria Henrique Espada

O site e o jornalista que mais irritam o Kremlin

As investigações do búlgaro Christo Grozev atingem Moscovo onde mais dói: identificou quem envenenou Navalny e os Skripal, quem aponta os alvos dos mísseis na Ucrânia, quem abateu o voo MH17. Foram sempre agentes russos – mas ele deu-lhes nome e cara.

CHAMOU “ASSASSINOS DE CONTROLO REMOTO” AOS RUSSOS QUE APONTAM MÍSSEIS A HOSPITAIS. E IDENTIFICOU-OS

Três semanas, três datas, três acontecimentos com um elemento comum: Christo Grozev. A 24 de outubro, Grozev publicou no site de jornalismo de investigação Bellingcat a identificação de 33 elementos da equipa russa de engenheiros que determinam a trajetória de cada míssil a atingir a Ucrânia e, portanto, a atingir estruturas civis, hospitais, escolas, estações de comboio – o que poderá constituir um crime de guerra. A investigação do Bellingcat, em parceria com o The Insider ea revista alemã Der Spiegel, durou seis meses e identificou as localizações de onde trabalham os engenheiros, as suas chamadas telefónicas para a hierarquia militar, e muito mais, das suas redes sociais às famílias. Grozev chamou-lhes “os assassinos do controlo remoto”.

No dia 14 de novembro, a União Europeia aplicou sanções a todos os agentes do FSB, os serviços secretos russos, envolvidos no envenenamento do dissidente russo Alexey Navalny, e que tinham sido identificados numa investigação de Grozev, um por um e com uma estarrecedora chamada telefónica entre envenenado e envenenadores pelo meio, gravada e filmada.

E, no dia 17 de novembro, o tribunal holandês que julgou o caso do abate, em 2014, do voo MH17 da Malaysia Airlines sobre o Donbass ocupado, condenou três pessoas (e absolveu uma por falta de provas de envolvimento direto) a prisão perpétua pelo crime. O juiz que presidiu ao julgamento considerou que “não existe dúvida razoável” de que o MH17 foi abatido por russos. Os condenados foram Igor Girkin e Sergey Dubinsky, ex-agentes do FSB, e Leonid Kharchenko, um líder separatista ucraniano (nenhum esteve no julgamento). Em 2019, o

Bellingcat publicou uma extensa investigação – eram 87 páginas – identificando os separatistas ligados ao abate do MH17. E publicou as primeiras informações reveladoras sobre o caso, provando a presença de mísseis russos Buk no local, já em 2015.

Grozev esteve imparável no Twitter no dia 17, dando conta da leitura da sentença. O relatório de 2017 foi já feito com ele como principal investigador para a Rússia do

Bellingcat, onde surgiu pela primeira vez em 2015, depois de começar a publicar em blogues sobre a extensão das estratégias de desinformação russa na Ucrânia pré e pós-ocupação de 2014. Mas quem é Grozev e o que é o Bellingcat,eo que fez para – como o próprio jornalista disse na conferência inaugu

ral em Sciences Po, Paris – se tornar “o pior pesadelo do Kremlin”?

A afirmação tem inúmeras demonstrações possíveis. Quando o Bellingcat fazia cursos de pesquisa em fontes abertas destinadas a jornalistas e até a alguns serviços secretos ocidentais (entretanto deixaram de o fazer), em 2017, descobriram depois, um dos agentes era um agente do GRU (os serviços secretos militares russos). E quando o embaixador russo em Londres deu uma conferência de imprensa a desmentir o envolvimento de Moscovo no envenenamento dos Skripal (pai e filha, russos) com Novichok em Salisbury, no Reino Unido, ou até que tivesse havido envenenamento, proferiu não menos do que 37 vezes o nome Bellingcat.E quando as autoridades alemãs acusaram finalmente um ex-agente do FSB (que viajou com um visto turístico para Berlim) pelo assassinato de um líder rebelde checheno, Zelimkhan Khangoshvili, o despacho sustentava-se sobretudo na “testemunha G”. Que, descrevia o texto de forma bastante indiscreta, “trabalha para um conhecido site noticioso internacional”, “fala russo, búlgaro e estónio” e “vive em Viena” [na altura]. Era “G” de Grozev.

O trabalho que ninguém fazia

Grozev, búlgaro, ainda trabalhou como jornalista na faculdade, quando estudou Comunicação de Massas e Estudos de Media na Universidade Americana de Sófia, mas fez carreira como gestor em várias rádios comerciais e em várias partes da Europa (Bulgária, Rússia, Ucrânia, Irlanda e, nos últimos anos, sobretudo na Holanda), com razoável sucesso. O que o fez querer regressar à investigação jornalística, tem repetido, foi assistir em primeira mão à penetração da propaganda russa na Ucrânia pós-2014. E o que o fez, e ao Bellingcat, fundado precisamente em 2014 pelo jornalista e

blogger inglês Eliot Higgins, ter enorme sucesso (o site tem 46 investigações sobre a Rússia, todas elas dignas de filme de espionagem), foi, por um lado, perceber que havia um “buraco” no mercado, e, por outro, os métodos. Começando pelo primeiro: Grozev tem apontado que a lei internacional assume que os Estados não se portem mal, o que leva a que muitos crimes não sejam sequer investigados; nem são fáceis para a imprensa tradicional, porque para chegar aos resultados a que o Bellingcat chega também é preciso quebrar regras que a imprensa tradicional observa. E daí chegamos aos métodos: recurso a fontes abertas, a metadados, e também à compra de bases de dados no mercado negro russo, que permitem chegar a conclusões. Caso prático: Grozev pagou a um elemento de uma agência de viagens pelos dados das deslocações de vários agentes do FSB ao longo de anos; e também comprou os dados tele

fónicos (chamadas, duração, localização, de quem e para quem). Cruzando os dois elementos, e simplificando, identificou, por exemplo, toda a equipa de agentes que há muito seguiam Alexey Navalny – e que o envenenaram em agosto de 2020.

Navalny, veneno e segurança

Em dezembro de 2020, meses depois de sofrer uma tentativa de envenenamento, Navalny publicou o vídeo de uma conversa telefónica sua com os agentes que o tinham tentado matar.

Navalny: Konstantin Borisovich? Kudryavtsev: Sim, sim!

N.: Aqui fala Ustinov Maxim Sergeevich, assessor de Nikolay Platonovich Patrushev [ex-diretor do FSB]. Obtive o seu número de Vladimir Mikhailovich Bogdanov [diretor do centro de tecnologia especial do FSB]. Desculpe ser tão cedo, mas preciso urgentemente de 10 minutos do seu tempo. K.: Muito bem.

Navalny (isto é, “Maxim”) explica que lhe foi ordenado que investigasse o que correra mal na operação para envenenar Navalny – para evitar outras falhas. Kudryavtsev acaba a explicar em detalhe como foi colocado Novichok na roupa interior de

Navalny e que tudo teria corrido bem na operação se o avião não tivesse aterrado de emergência a tempo de tratar a vítima, e que apesar da falha, considera que o método escolhido foi o correto, “foi o que os meus superiores decidiram, por isso provavelmente está correto”.

O número foi obtido pela investigação de Grozev, que surge no vídeo ao lado de Navalny enquanto

“DEVEMOS ESTAR NO TOP 10 DA LISTA PESSOAL DE ALVOS DE PUTIN”, DISSE GROZEV NUMA PALESTRA

dura a surreal chamada.

O surreal tornou-se o costume, como quando identificaram a intervenção russa numa tentativa de golpe no Montenegro em 2016, ou, em agosto, uma agente russa com muitos amigos na base da NATO sediada em Nápoles.

Dois bilhetes para amanhã

Na palestra em Paris, em setembro, a sua mais recente grande intervenção pública, Grozev brinca: “Há mais de 50 agentes do FSB que eu conheço melhor que as mulheres deles.” É credível, mas isso comporta um risco. Primeiro, pessoal – mas sobre esse pouco fala. A sua vida privada é pouco ou nada conhecida (sabe-se que tem uma filha, mas nada mais) e admite alguns cuidados de segurança pessoal, mas sem pormenores. Diz que o estilo de vida sem rotinas predefinidas, por vezes aleatório, é uma vantagem. “Nunca sei onde vou estar amanhã e compro sempre dois bilhetes, até tenho dois bilhetes [de avião] para amanhã.” “Nós devemos estar no top 10 da lista pessoal de alvos de Vladimir Putin. Mas não saberemos até acontecer.” Para já, assegura, só houve “intimidação”.

E há ainda um custo humano, por um lado, para as fontes que arriscam vender informação que depois surge no site; por outro, porque, admite, é preciso desenhar linhas vermelhas e arriscar (ou não) a cada momento. “É preciso coragem para escrever as nossas próprias regras éticas de jornalismo. E as regras têm de mudar quando se lida com ‘maus atores’ que permanecem no poder indefinidamente.” E ir, por exemplo, comprar dados a agentes duvidosos. Reconhece que há sempre um risco ético, medido caso a caso.

Mas não demonstra vontade de parar. Estima que neste momento, apenas 30% dos russos terão acesso ao Bellingcat: “Mas serão esses que vão continuar a lutar” pela mudança do país. Para fora, o impacto será maior. Sergei Guriev, o economista russo reitor de Sciences Po e anfitrião de Grozev, apresentou-o assim aos alunos de jornalismo: “Christo Grozev transformou a imagem da Rússia e do regime de Putin.” ●

Sumário

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